29 de agosto de 2014

Ghost in the Shell 1.5: Human-Error Processor: Policial cyberpunk

Em larga medida, a força de Ghost in the Shell de Shirow Masamune no contexto do cyberpunk reside na forma como o autor japonês optou por pegar nos temas mais clássicos do subgénero enquanto subverteu todas as suas convenções, afastando-se da perspectiva marginal que serve de ponto de vista a muitas das suas obras (Neuromancer, de William Gibson, vem à mente) para dar o protagonismo a uma equipa de forças públicas de segurança, e rejeitando as tramas de tom e estética neo-noir para explorar as possibilidades luminosas de um futuro hiper-tecnológico no qual as fronteiras entre natural e artificial e o humano e a máquina se começam a esbater de forma progressiva e irreversível. A graphic novel original, um autêntico tour de force filosófico, deu origem a um universo ficcional em várias continuidades distintas (quando não contraditórias) e em tons divergentes, mas sempre com uma fascinante problematização económica, política e social dos avanços tecnológicos. E na sua sequência surgiu, para além da segunda graphic novel - intitulada Ghost in the Shell 2.0 - Man-Machine Interface - um conjunto de histórias dispersas, em jeito de contos policiais, num formato próximo do "caso da semana" de muitas séries televisivas de investigação policial; e essas histórias foram compiladas em 2003 (no Japão; em 2007 nos Estados Unidos, pela Dark Horse Comics) num único volume intitulado Ghost in the Shell 1.5: Human-Error Processor.

Mais do que uma história (ou um conjunto de histórias) na continuidade do seu universo ficcional, Human-Error Processor funciona como uma mini-sequela à graphic novel original,  numa espécie de ponte narrativa entre os acontecimentos da história original e da sua sequela directa, Ghost in the Shell 2.0: Man-Machine Interface que mostra como continuou a equipa liderada por Aramaki após o desaparecimento da Major Motoko Kusanagi, a sua líder no terreno, após o estranho caso do "Puppeteer". Com um novo elemento (Azuma), a Secção 9 continua activa e a investigar casos de ciberterrorismo - e são alguns desses casos que os leitores podem encontrar nestas páginas, num formato episódico e num tom geral que alude a alguns episódios isolados das duas temporadas da série televisiva Stand Alone Complex

Em si, os casos revelam-se interessantes tanto pela investigação como pela forma como cada um acrescenta algo mais ao espantoso e complexo universo ficcional de Shirow Masamune - um futuro profundamente tecnológico com uma componente económica e geopolítica explorada ao mais intrincado pormenor nos jogos de interesses e nas conspirações que envolvem todos os acontecimentos que a Secção 9 vai investigar. Mas onde o autor se eleva é na forma como mostra o alcance, o impacto e as possibilidades da tecnologia que apresenta - da zombificação electrónica de Fat Cat à sofisticação de combate de Drive Slave, numa história que inclui uma breve aparição de Motoko que abre caminho para o seu protagonismo em Ghost in the Shell 2.0. A complementar a trama que vai tecendo na sua arte frenética e detalhada e na sua escrita enérgica, Shirow Masamune dá como bónus ao leitor toda uma série de comentários e de anotações nas margens das páginas e nos espaços entre vinhetas, aludindo a pormenores das armas e das tecnologias, explicando os motivos de alguns pormenores e lançando alguma luz sobre as suas decisões narrativas e artísticas - tornado este Human-Error Processor numa espécie de versão anotada que lhe permite entrar numa espécie de diálogo com o leitor, criando toda uma nova experiência de leitura.

É possível que Human-Error Processor não funcione bem como ponto de entrada no universo de Ghost in the Shell - toda a sua narrativa surge muito enquadrada no grande caso do "Puppeteer" que marcou a graphic novel original, e a caracterização várias personagens (dos semi-protagonistas Batou e Togusa aos elementos mais secundários da Secção 9 como Ishikawa e Borma) é feita na continuidade das histórias já contadas, partindo do princípio de que o leitor já se encontra familiarizado com elas. Mas para quem já tiver explorado o universo ficcional de Ghost in the Shell em algum dos seus vários formatos - banda desenhada, televisão ou cinema -, Human-Error Processor revela-se numa leitura complementar de grande interesse pela abordagem policial que faz a temas clássicos de cyberpunk e pelo humor que Shirow Masamune imprime em cada página, entre a imagem e o texto. Que o formato de leitura invertido (da direita para a esquerda) não sirva de desculpa aos leitores ocidentais, por estranho que possa ser no início: o esforço adicional será recompensado. Ghost in the Shell, afinal, não é um dos mais ilustres representantes do cyberpunk por acaso. 

Título: Ghost in the Shell: Human-Error Processor
Autor: Shirow Masamune
Tradução: Frederik L. Schoot
Editora: Dark Horse Comics
Ano: 2007 (2003 na edição japonesa original)
Formato: Paperback
Páginas: 176
Género: Ficção Científica / Cyberpunk

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